Na indústria, o entendimento dos fatores humanos e da ergonomia é essencial para otimizar a interação entre trabalhadores e seu ambiente, possibilitando a segurança, o conforto e a eficiência no trabalho.
Afinal, o que é ergonomia?
Ergonomia e fatores humanos são disciplinas que nasceram na mesma época, em locais distintos e com objetivos similares, porém com aplicações um pouco diferentes. Com o passar dos anos, as disciplinas foram se aproximando ainda mais em sua aplicabilidade, de maneira que atualmente, as entidades e associações de ergonomia e fatores humanos denominam as disciplinas como sinônimos.
No Brasil, a ergonomia ganhou destaque a partir da década de 90, quando foi atualizada a norma regulamentadora de nº 17 – ergonomia, que teve como principal fator contribuinte para sua atualização, o “boom” de LER/DORT ocasionado pelo processo de informatização das atividades de trabalho. Dessa forma, a norma teve itens mais detalhados voltados para o mobiliário e contribuintes para lesões osteomusculares, embora também citasse o objetivo principal da ergonomia em seu item 17. 1. “Esta Norma Regulamentadora visa estabelecer parâmetros que permitam a adaptação das condições de trabalho às características psicofisiológicas dos trabalhadores, de modo a proporcionar um máximo de conforto, segurança e desempenho eficiente”.
Por consequência, a ergonomia no Brasil ficou conhecida como uma disciplina que avalia postura e levantamento de carga no ambiente de trabalho, embora sejam apenas alguns dos fatores avaliados.
Para disciplina de fatores humanos, a confusão ocorre pela analogia realizada por grande parte da população devido ao seu nome, restringindo sua aplicação apenas ao ser humano e seus fatores individuais que podem impactar durante a atividade de trabalho.
Conforme descrito na definição da Associação Internacional de Ergonomia – IEA (2020) e também utilizada pela ABERGO, “a ergonomia ou fatores humanos (FH/E) é a disciplina científica preocupada com a compreensão das interações entre humanos e outros elementos de um sistema, e a profissão que aplica teoria, princípios, dados e métodos para projetar a fim de otimizar o bem-estar humano e o desempenho geral do sistema.”
Ou seja, a ergonomia ou fatores humanos é a ciência do trabalho (Ergo = trabalho em grego, nomia = leis, procedimentos em grego) que busca compreender todos os fatores relacionados à atividade de trabalho para transformá-la buscando maior conforto, segurança e produtividade.
Por esse motivo, não se deve limitar as avaliações de ergonomia às questões biomecânicas, assim como fatores humanos à condição para execução da atividade. A disciplina deve ter uma visão integrada como está representada na Figura 1. Observa-se que para facilitar a compreensão, divide-se a ergonomia em 3 grandes campos: cognitivo, organizacional e físico.
Figura 1. Fatores Humanos/Ergonomia (FH/E), uma visão integrada de diferentes domínios de especialização.
Fonte: ABERGO
A ergonomia cognitiva trata dos processos mentais envolvidos durante a atividade de trabalho, como a percepção, a memória, a tomada de decisão, as respostas motoras com relação às interações entre as pessoas e outros componentes de um sistema.
A ergonomia organizacional aborda a estrutura organizacional, as regras, processos, como a atividade é planejada, se é em equipe ou individual, as metas de trabalho, se ocorre presencialmente ou remotamente, a comunicação entre todos os envolvidos.
Por fim, e não menos importante, a ergonomia física trata de mobiliário, equipamentos, layout, aspectos ambientais e as características antropométricas e biomecânicas dos trabalhadores durante as atividades de trabalho.
Algumas definições de fatores humanos dividem os campos em fatores organizacionais, fatores tecnológicos e fatores individuais. Todavia, os fatores abordam os mesmos temas apenas alterando a forma de apresentar e agrupar as 3 grandes áreas.
2. Aplicação
De acordo com a IEA, os princípios e metodologias de design participativo HFE aplicam-se ao design de tarefas, empregos, produtos, ambientes, indústrias e tipos de trabalho. (IEA)
Conforme relatado anteriormente, o desenvolvimento da ergonomia e fatores humanos possuem o mesmo objetivo: analisar o trabalho. No entanto, existem formas de abordagens e métodos distintos, e por vezes, podem ser aplicados de forma complementar.
A aplicação da ergonomia pode ocorrer das seguintes formas.
2.1. Ergonomia da Atividade
A ergonomia da atividade tem origem francofônica e tem como característica a análise da atividade de trabalho real. É necessário observar e analisar todos os fatores relacionados à atividade de trabalho para que se possa compreendê-la e assim transformá-la, parafraseando o nome do livro que apresenta essa metodologia de Guérin (2002). Ou seja, a avaliação ocorre sobre situações reais de trabalho.
Até pouco tempo era comum denominar a ergonomia realizada em ambientes e atividades já existentes como ergonomia de correção, contudo essa divisão não tem sido mais aplicada, pois a “correção” dos problemas encontrados geram em algum grau uma concepção.
Para essa avaliação, os 3 campos da ergonomia estão presentes: física cognitiva e organizacional. Por exemplo: se pegarmos a atividade do operador de guindaste em uma plataforma offshore (Figura 2). Para a situação analisada precisamos escutar e observar quais as dificuldades e/ou riscos o trabalhador vivencia para propor melhorias com foco na saúde, segurança e produtividade.
Figura 2. Atividade do operador de guindaste
Fonte: Autor
Deve-se analisar o equipamento que ele utiliza, o tipo de cadeira, onde estão localizados os dispositivos e interfaces de comando. A temperatura, iluminação ou ruído impactam em algum momento do dia na execução da atividade como ofuscamento por luz natural? Durante a execução da atividade o operador de guindaste consegue visualizar a carga ou depende de olheiros passarem as orientações via rádio? Quantos trabalhadores estão envolvidos na área para a movimentação da carga? As condições de vento e maré (movimentação da embarcação) ocasionam alguma restrição durante a atividade ou exigem uma atenção maior? O operador conhece o equipamento e a unidade? Sabe atuar em caso de emergência? A atividade tem prazo para ocorrer? Os equipamentos de comunicação da cabine de guindaste funcionam adequadamente, de forma clara e com volume adequado? Enfim, é necessário escutar as dificuldades e observar o operador durante a execução para construir junto com os trabalhadores e lideranças propostas de melhorias.
2.2. Ergonomia de Concepção
Na década de 80, diversos acidentes em indústrias químicas e nucleares contribuíram para evidenciar a importância da participação da ergonomia em processo de concepção. Especialmente na Europa, os investimentos em automatização de processos transformavam as situações de trabalho sem considerar as competências humanas necessárias para a realização das atividades.
Neste contexto, surge a necessidade de incorporar o trabalho real na reflexão sobre a concepção, onde a Ergonomia atua favorecendo a aproximação entre o trabalho real e a situação projetada. Partindo da premissa de que é preciso compreender o trabalho para transformá-lo, a principal estratégia para geração do conhecimento acerca do trabalho é a Análise Ergonômica do Trabalho – AET.
No entanto, ao realizar uma AET em determinada situação de trabalho visando à concepção de uma nova condição operacional, ao se modificar as condições de trabalho, necessariamente a atividade também será modificada. Tal problemática é denominada como “paradoxo da ergonomia de concepção”.
Buscando contornar essa limitação metodológica, o ergonomista pode recorrer a diversos recursos, que podem incluir: a implementação de abordagens participativas de concepção, análise de situações de referência, identificação de situações de ação caraterística, realização de simulações, entre outros.
No entanto, mesmo com o uso dos recursos mencionados, não é possível prever integralmente a atividade futura, pois não se pode prever todas as variabilidades que irão incidir sobre o trabalho, nem todas as racionalidades dos operadores que trabalharão na situação futura. Logo, o que a ergonomia busca durante o processo de concepção e, principalmente, prever margens de manobra para os modos operatórios futuros.
2.3. Ergonomia de Produto
Também no campo do desenvolvimento de produtos, a ergonomia deve ser considerada desde o início do processo de concepção, integrando as características fisiológicas, cognitivas e emocionais dos usuários para criar soluções mais seguras, confortáveis e eficientes. É importante destacar que produto pode ser um objeto, equipamento ou interface de trabalho.
O projeto de um produto deve ter como foco o usuário final, adaptando o produto às suas necessidades, capacidades e limitações. Produtos bem projetados não apenas aumentam a eficiência, mas também garantem que sejam intuitivos e fáceis de usar, reduzindo erros e frustrações. Para isso, torna-se necessário envolver os usuários, identificar critérios de usabilidade e metas decorrentes da experiência destes usuários.
2.4. Neuroergonomia
O desenvolvimento de novas tecnologias e sua aplicação em neurociências permitiu contribuir com a ergonomia no aprimoramento do conhecimento sobre fatores humanos e seus diferentes aspectos, criando assim um campo de conhecimento onde essas duas disciplinas atuam em conjunto, denominado neuroergonomia. A neuroergonomia busca compreender os fatores humanos utilizando ferramentas de neurociência para extrair dados de atividade neural, foco da atividade e/ou reações com aumento de estresse.
A tecnologia se desenvolveu de forma que o uso equipamentos, como o Eletroencefalograma (EEG) portátil (Figura 3), não precisa mais ficar restrito ao ambiente de laboratório e pode ser utilizado também durante a execução de algumas atividades.
Figura 3. Eletroencefalograma portátil (EMOTIV©)
Os equipamentos que podem ser utilizados pelos trabalhadores durante a execução são denominados wearables. Em tradução livre seria vestíveis, ou seja o trabalhador faz uso do equipamento, durante a execução da atividade. Desta maneira que se pode identificar os momentos da atividade que exigem foco ou aumentam o estresse do trabalhador e quais os fatores contribuintes.
Além do EEG, existem os óculos de rastreio visual – eye tracking (Figura 4). Os óculos permitem acompanhar o foco visual do trabalhador durante a execução de sua atividade permitindo ao ergonomista uma visão da atividade de trabalho pela perspectiva do trabalhador, auxiliando na identificação dos fatores envolvidos na atividade de trabalho.
Figura 4. Óculos de rastreio visual (Pupil Labs©)
Ou seja, a neuroergonomia é o uso de ferramentas de neurociência para contribuir na análise da atividade, ou na concepção de novos produtos ou ambientes, buscando a melhoria para os usuários e/ou executores de determinado produto ou atividade.
Ergonomia no Brasil
No Brasil, conforme já mencionado o governo possui uma Norma Regulamentadora de nº17 – Ergonomia, que determina que as empresas realizem avaliações de ergonômicas.
Após a última revisão da norma em 2022, não é determinado o método de análise das empresas, desde que realizem uma análise ergonômica preliminar (AEP). Todavia, a empresa deverá realizar uma Análise Ergonômica do Trabalho (AET), que é um método de avaliação da Ergonomia da Atividade, quando: o resultado da AEP sugerir um aprofundamento da análise; existirem demandas oriundas de acompanhamento de saúde dos trabalhadores; ou indicada por causa relacionada às condições de trabalho na análise de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho.
A prática da ergonomia não é restrita a uma profissão, mas sim para profissionais multidisciplinares. Contudo, deve ser exercida por profissionais com cursos de formação. Desta forma, os profissionais além do conhecimento de domínio de sua formação, precisam de conhecimento suficiente para abordar elementos relevantes à ergonomia. Isso pressupõe um amplo conhecimento também de outras áreas da ergonomia.
Referências
- ABERGO. O que é ergonomia. Disponível em: <O que é Ergonomia | ABERGO>
- BRASIL. Norma Regulamentadora 17: Ergonomia. Portaria MTP n.º 4.219, de 20 de dezembro de 2022 22/12/22. Diário Oficial da União, Brasília, 2022. Disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselhos-e-orgaos-colegiados/comissao-tripartite-partitaria-permanente/arquivos/normas-regulamentadoras/nr-17-atualizada-2022.pdf
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